Veridiana Avelino
5 min readApr 17, 2024

Mania de Reaproveitar

(Texto criado para o Blog do Saber)

Desde criança, aprendi a importância das coisas. Crescendo no sertão do Nordeste, numa realidade de escassez (a começar pela água), o que eu tinha sempre me era muito precioso. Dessa forma, aprendi a reaproveitar o que chegava em minhas mãos, mania que trouxe para a vida adulta.

Reaproveitava tudo que era possível, como exemplo, as roupas das minhas primas, livros usados (o que despertou minha paixão por sebos literários), e herdava o resto de material escolar de meus irmãos mais velhos.

Todavia, sempre fui muito grata e aprendi lições que, se tivesse crescido de forma diferente, jamais as teria. Nunca fui exigente com meus pais, mas sempre procurei exigir o melhor de mim, e assim, cresci com a mentalidade de reaproveitamento e de gratidão.

EUA, o país do consumo:

Quando vim morar nos EUA, confesso a vocês que meus primeiros anos foram de verdadeiro deslumbramento. Tudo era oferecido em grandes quantidades e variedade, o que me deixou eufórica. Máquinas que fazem tudo, oferta de itens que nunca tinha sonhado que existiam, prateleiras coloridas, abarrotadas de coisas e produtos do mundo todo.

Diz meu marido que enchi a cozinha de “cacarecos,” embora eu os utilize, pois gosto muito de cozinhar, arrumar mesa, mudar a decoração conforme as estações do ano ou ao meu bel prazer.

Outra coisa que me chamou a atenção foi a qualidade do lixo: é possível ver itens em bom estado de conservação sendo descartados. Há grupos, nas redes sociais, em que as pessoas doam móveis, roupas, calçados e eletrônicos bem conservados. Aqui, não tem essa de levar um equipamento para o conserto. Se deu problema, joga-se fora e compra outro (com raras exceções).

Depois do deslumbramento, voltei à minha mentalidade de reaproveitamento, hoje, aprimorada com foco na preservação do meio ambiente e na diminuição do lixo: sacolas de supermercado servem nas lixeiras, camisetas manchadas e tolhas velhas viram panos de limpeza e frascos de geleia servem perfeitamente para meu fermento natural ou doces caseiros. Algumas embalagens, que parecem obra de arte, as reaproveito como caixas para meus apetrechos de escrita.

Tenho grande admiração por quem tem o talento de transformar o material reciclado em arte ou coisas uteis, como dizem, “do lixo ao luxo,” onde artesãos transformam resíduos em novos artigos. Tais pessoas merecem nossos parabéns. Fazem a diferença no mundo e na vida de muita gente.

Consumismo nas relações

Infelizmente, a questão do consumo transcende as coisas materiais e chega na esfera pessoal. Por vezes, tratamos as pessoas como se fossem meros objetos, que podemos usar e quando abusar, ou apresentarem algum vício (defeito, na linguagem jurídica), descartarmos.

Na época de nossas avós, sempre era possível consertar as coisas. Acredito que, naquele tempo, os artigos eram feitos com mais garantias, com bases mais sólidas, difíceis de quebrar. Guardo esse ensinamento até hoje.

Então, urge a pergunta: A indústria mudou conforme as pessoas, ou foi o contrário? Fato é que estamos mais vulneráveis, quebramos facilmente, colocamos defeito em tudo que vemos e parece que nada nos serve, nessa sociedade de consumo em que vivemos.

A urgência em consumir chegou aos relacionamentos (amizades, trabalho e íntimos, pois não posso chamar de amoroso, pessoas saírem apenas para o sexo). Com isso, muitas pessoas estão se consumindo, usando e se deixando usar nessa ânsia infinita por mais.

Não se enganem, pois a cada interação que temos, deixamos um pouco de nós e ficamos também com resíduos dos outros. Por isso, é bom selecionarmos nossas amizades e pessoas que queremos para um convívio mais próximo, sempre tratando com respeitando cada ser que cruza nosso caminho.

Dessa forma, acredito que seja o momento de aderirmos ao minimalismo, que nos modela para termos apenas o necessário, uma vez que nossa casa não é depósito e tampouco, nossas vidas.

Até onde podemos reaproveitar pessoas?

Nos estados Unidos, você não pode levar roupas rasgadas, com furinhos ou manchas para os postos de reciclagem. Ninguém aceita. É considerado lixo.

Da mesma forma, há pessoas que por mais que você se esforce, faça reparos aqui e acolá, não tem mais como reaproveitar. São aqueles parceiros e amizades tóxicas, parentes também, colegas de trabalho que só nos dão lixo em suas falas, comportamento e atitudes. Por mais que a gente tenha boa vontade, não há como reciclar.

Todavia, há pessoas, que por estarem enfrentando algum problema, e, por vezes, apresentarem uma falha, até a falta de entendimento mesmo, podem sim ser recicladas. Com ajustes aqui e ali, a convivência acaba fluindo e se tornando frutífera.

Em suma, nossos relacionamentos, sejam quais forem, quando não temos mais como reaproveitar, devemos ter a coragem para dispor daquele lixo que nos incomoda e colocá-lo num depósito devido, para que, com sorte, possa ser reciclado.

História real

Certa vez, estava eu e minha amiga que o Direito me deu, Gabriela, na Secretaria da Faculdade, para pegarmos uns certificados. A senhora que nos recebeu estava com aquela cara de ódio do mundo e de todos os seus habitantes, nos atendendo com muita rispidez.

Eu olhei para Gabriela e disse em alto e bom som, com uma voz bem meiga:

“_ Gabi, mas que simpática senhora! Veja, vai procurar nossos certificados. Às vezes, chegamos aqui e ninguém sequer nos vê. Eu fico tão feliz quando encontro pessoas como ela.” E Gabi, atordoada, com aquela cara de quem diz “você está louca?” E eu, me segurando para não rir, olhando com toda a cara de gratidão e admiração que pude fazer naquela hora, para a senhora.

Ela se abriu num sorriso. Agradeceu, começou a conversar sobre qualquer coisa. Trouxe nossos certificados, toda sorridente e comunicativa e eu, continuei a elogiá-la e agradecer a atenção. Depois que saímos, tivemos nossa crise de riso. Nas outras vezes que lá estivemos, ela sempre nos recebia com um sorriso. Não precisou de muito, meus amigos, só algumas palavras.

Entretanto, posso dizer que minha maior feita como agente de reciclagem humana foi meu marido, já sambado, de quatro casamentos. Tem dado certo, mesmo com os percalços de uma vida a dois, mas como falei, trago a mentalidade de sempre procurar consertar, não descartar.

A vida e sua mania de nos reaproveitar.

A vida é o verdadeiro agente de reciclagem. Vai nos moldando, fazendo ajustes, de forma tão sutil que nem percebemos. Nos tornamos mais compreensíveis, mais sábios, ganhamos mais discernimento para escolher nossas “tribos”, o que nos traz paz, o que faz sentido nessa sociedade tão controversa.

Aos poucos, vamos aprendendo coisas novas, deixando as que não nos servem mais pelo caminho, enfim, vamos nos aprimorando. É a vida sempre nos reaproveitando, nos dando mais uma chance de sermos melhores para nós e para os outros.

Agora me fale, você gosta de reaproveitar coisas ou prefere descartar e comprar novas?

Veridiana Avelino

Leitora voraz e também escritora. Gosto de viver, conhecer lugares, experimentar sabores, sentir o cheiro das coisas. Ver esse mundo que Deus criou!