Transtornos

Veridiana Avelino
4 min readFeb 28, 2021

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27/30 — Experiências ocorridas no trabalho

Foto: Blog Vittude

Geralmente a rotina de um hospital de uma pequena cidade no interior do Nordeste é pacata. O que vou narrar são três fatos pontuais de uma observadora que trabalhou nesse local. De lá para cá, muita coisa mudou, inclusive as rotinas que não são mais as mesmas.

No tempo dessa narrativa ainda não tinha os postos de saúde, então os serviços básicos como curativos, alguns exames laboratoriais, aplicação de medicação eram realizados nesse pequeno hospital, além dos atendimentos de urgência como uma febre ou algum hipertenso que tinha esquecido de tomar sua medicação, uma dor de cabeça ou algo assim.

Ah, havia muitas verificações da pressão arterial. O pessoal do interior adora ir ao hospital verificar como está a pressão. São pessoas muito simples, que chegam dizendo “_Tire aqui minha pressão”. Aqui acolá, um técnico de enfermagem, que aprendera uma bonita palavra no curso, gostava de dizer “_Se eu tirar você morre, o correto é dizer aferir”. Ora, me diga se essa informação tem alguma utilidade para um idoso que nunca frequentou uma escola e o que ele quer na vida é só saber se está bem?

Pois bem, caríssimos, geralmente em toda cidade do interior tem um doido de estimação. Na minha cidade tinha alguns: Aquela pessoa que tem problemas mentais, mas não agride ninguém, anda pelas ruas da cidade e é conhecido por todos. Um deles, sempre à tardinha, chegava ao hospital e ficava conversando com quem estivesse presente. Quando se empolgava, soltava uma gargalhada tão estridente e alta que se espalhava pelos corredores, pois sua voz tinha um timbre muito forte. Quando ele fazia isso, era difícil não rir junto e pedir que o mesmo “baixasse o volume” por causa dos pacientes internos. Então, aquele bom louco levava a mão na boca e arregalava os olhos, como quem fala consigo mesmo “O que foi que eu fiz?”. Conversava mais um pouco e ia embora, sem fazer mal a ninguém.

Outra personagem era uma uma senhora educada que gostava de passar a mão no cabelo e cumprimentar todos com beijos no rosto. Adorava fumar. Se alguém a encontrasse no dia a dia, jamais desconfiaria dos picos de esquizofrenia daquela ruiva de corte de cabelo elegante. Raramente ela tinha crises, mas quando havia algum problema no pagamento de sua perícia médica, ela se alterava, o que é natural. Se nós, que achamos que somos “normais” ficamos perturbados quando o dinheiro está curto, imagine quem tem predisposição.

Teve um dia que essa senhora teve uma crise. Suas crises eram mais tendenciosas para falar sobre sexo, de uma maneira que só mesmo Freud explicaria. E nesse dia, que ela realmente estava em outra dimensão, mesmo medicada: Ela ficava conversando com um companheiro de seu passado (comentavam que ela enlouquecera por causa do término). Depois ela quis envolver outras pessoas no seu solilóquio esquizofrênico e como eu estava perto e ela muito educada, veio me apresentar a esse namorado invisível. Eu não tive outra opção se não estirar minha mão para o nada, para o vazio, que ela dizia ser esse grande amor. Ela demonstrou estar muito satisfeita, em apresentar o namorado. Como não melhorava, o médico do plantão achou melhor encaminhá-la para um hospital especializado, onde ela passaria alguns dias e depois, voltaria. Era sempre assim.

Outra vez trouxeram um homem. Ele tinha uns aproximadamente uns quarenta anos, e era taxista. Era um domingo e o hospital estava sem muito movimento, quando ligaram dizendo que esse homem estava passando mal, mas não entraram em detalhe. A ambulância foi pegá-lo e quando chegou, esse homem deu um rodopio na recepção, parando com os braços abertos, como o redentor e dizendo que ninguém ia tocar nele. Isso com os olhos esbugalhados e ameaçadores. Como a cidade é pequena e quem mora no interior sabe disso - todo mundo conhece todo mundo e ele era muito conhecido por ser sempre solícito, educado, sorridente. Quando a equipe presente viu essa cena, deduziu ele estava mentalmente alterado, talvez por alguma substância entorpecente. Foi quando a esposa dele, uma pessoa muito simples, foi dizer ao médico que ele quando bebia “pegava espírito”. E aqui não estou me referindo a nenhuma religião, estou apenas repetindo as palavras tais e quais ouvi. Então, o médico prescreveu um tranquilizante, que foi uma verdadeira odisséia para conseguir aplicar, pois ele pulava e rodopiava, não deixando que ninguém se aproximasse. Com muito custo, conseguiram. Ele se acalmou e foi para casa. No outro dia, quando trouxe uma senhora para fazer um curativo estava tão envergonhado que dava dó. Ele ficou se desculpando com todos.

Meus caros, eu poderia até escrever um livro sobre fatos que recordo do tempo que trabalhei nesse pequeno hospital, mas deixo aqui o registro dessas três pessoas com problemas mentais que se apresentavam de diferentes formas. Eu tinha uma tia que era esquizofrênica e cresci com as pessoas dizendo que ela tinha enlouquecido por causa de um rompimento de noivado. Já adulta, me inteirando dos fatos, soube que era uma depressão, e naquela época, as pessoas achavam que depressão não existia ou era uma bobagem. Sei que essa depressão evoluiu e ela morreu com uma esquizofrenia de grau elevado. Esclareço desde já que não sou profissional de saúde. Atuei nesse hospital no setor administrativo, onde tive oportunidade de observar muita coisa e aprender lições que levo para a vida.

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Veridiana Avelino

Leitora voraz e também escritora. Gosto de viver, conhecer lugares, experimentar sabores, sentir o cheiro das coisas. Ver esse mundo que Deus criou!